24 de março de 2014

Referência Íntima #2: "Ahhh!"


Radiohead brasileiro em março. De início, um suspiro meu. Ao final, um grito idem.
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chora!

27 de outubro de 2013

Nodoso #75 | O Nodoso Gosto das Coisas

A noite caída em borborema nunca foi noite direito. A margem esquerda do rio marolho e sua cidade nascida na base do tapa não se deram por vencidas na arte de negar a noite e suas coisas. Estrelas, grilos, sapos, fantasmas e assombrações a surgir pelos cantos da escuridão típica do fim de cada dia eram detalhes das tardes colhidas pelas paredes de madeira que faziam as casas daquela gente esquecida no meio daquela imensidão verde. Em borborema até a noite esqueceu-se de noite ser.  Assim, por motivo de nunca se soube, o sol mal se ia. estava sempre ali a espreita com seu brilho amarelo ouro fraquinho, com suas coisas de dia, seus barulhos de quem sabe que o calor acolhe e espanta. 

Sobre nunca ser noite, o prefeito daquele canto nada tinha com isso, que político só é dono do que é bom. E viver com o sol a pino como lua, boa coisa nunca pareceu ser. O que diriam os dali se pudessem dizer algo novo sobre o que já caducava com as páginas viradas do tempo. Como não havia noite, não havia a brisa amena das horas além, não havia a penumbra a beijar as pálpebras, não havia história de fantasma e curupira e rasga-mortalha a assustar criança. Em borborema esses assuntos eram de outros tons. Tons claros da manhã meio dia ou do lusco-fusco do fingir noite.  Não haviam cinzas ou violáceas de aurora e constatar tais faltas dava nos nervos como dá nos nervos o agora que não segue. Siga-se. 

Sobre a falta de findar os dias, tal qual o prefeito e sua magreza alva, os moradores se eximiam de responsabilidades, que, ouvia-se, a culpa do que acontece no mundo é assunto do divino ou de seu oposto, concordando nisso o pároco, o pastor e o pai-de-santo, mesmo que por desavenças de ideologias, hora ou outra, culpassem-se uns aos outros, o demo isso, satanás aquilo, excomungados tal pelo eterno fato. O fato é que nunca se soube da coisa e o passar do tempo não deixou conjecturas a respeito do tema, pois todo fato sobre o outro faz com que fato deixe de ser. Faz parte, alguém contou. Sobrou então apenas um muxoxo de quem aceita por costume o que o acaso mal escrito lhe impõe. Era assim sem ponto e vírgula. 

Desse mesmo muxoxo, Antônio era feito. O que não o fazia igual, embora por ali e pela pobreza todos fossem iguais de cara e espírito: a cara chupada para dentro da boca, os olhos afundados de um espanto e os dentes a fazer sobrar palavras na fala brava daquelas bandas. Assim como todos em carência, Antônio era pautado pela duvida e pela raiva que vinha nela. Da noite nunca ser noite, de nada sabia. A cada investida de pergunta, respondia antonio e sua boca de sorriso torto a contrariedade na tal certeza de quem ali vivia, algo que para quem ia e vinha, forasteiros de falas mansas e chiadas, paulistas e catarinas em busca das fortunas que davam em árvore, sentido não fazia. A noite nunca é, seu moço. E fim.

O sol e sua luz de ouro a fazer perder paciências, a forma como se mal dormia por aquelas praças, as firulas mal contadas, o mulherio desajeitado com o calor sobejando as partes, os homens de roupas abertas e suores a dizer pule na água, tudo parecia normal como a lua pálida típica dos dias. Órfão e feio, porque a condição primeira não basta para a vida, Antônio tinha vergonha da própria história com a qual mal se dava, que ao contrario da fábula de borborema, vivia num conto de treva sem da treva beber sequer dos sustos. Antônio era tal qual borborema, sua terra, tinha por vício deixar a vida seguir como o curso do rio que seguia pela margem dali: novo e talvez por isso, denso. Impávido e impaciente. Água e lama e segredos. 

Antônio, como borborema, sua terra que não tinha noite, perdeu-se: morreu a mãe antes de se entender mãe, criou-se com outra mulher que mãe passou a ser, mas que por motivos óbvios daquele tempo, não queria filho alheio para chamar de seu. e mal via no pai, um mascate que inventava xaropes e mungangos de curar moléstias, o pai que todo menino pequeno e menino grande procura ter. A história que tinha vergonha lhe fugia ao controle de quem escreve e pautava-se por uma infindável e interligada trama de mesmas coisas, maus tratos e malinagens nascidas com a madrasta trevosa. Tinha vício de esconder do moço comida para que a fome, quem dizia era ela, lhe ensinasse a viver por conta. Aprende, filho de deus, resmungava a mulher no tanque de lavar roupa, Vai trabalhar, vagabundo, xingava a mesma já na beira do fogo do feijão. A fome, meu filho, dizia o pai de antonio, ajuda a vencer na vida. Uma vez que vivemos nela a contragosto, pegamos gosto por sair de perto dela. E toda vez que o pai lhe dizia isso, nadava-lhe pelas vísceras uma especie de lamento que, fermentado como pão, fazia-se raiva e crescia e crescia. Nasci para viver e morrer como um qualquer, pensava o garoto, com palavras de quem garoto era, mas com sentimento de quem se via velho.

O certo é que Antônio, gente nascida da morte, sem saber, trazia no peito a mácula de achar-se matador. Matei minha mãe, padre. Por causa de mim morreu ela, pastor. Ó meu pai preto, sofro de culpa. Reclamava o já moço Antônio aos três sacerdotes de borborema que discordavam mesmo concordando. Reze, dizia um. Ore, ordenava o outro. Ofereça, aconselhava o ultimo. E Antônio rezava, orava e matava galinhas toda vez que sentia o peito pesar, a garganta em nó e a vida a perder sentido. Criado por mãe postiça, aquela vida de treze anos não fazia sentido. Mas em borborema, terra onde noite nunca teve, pouca coisa tinha. Borborema tinha árvores que criavam raízes, tinha gente que via e ouvia verdades e mentiras, tinha sol e chuva, os bichos a correr no mato, tinha o mato para dizer sou mato e daqui ninguém me tira e tinha uma noite que não era noite e que mesmo sem o pretume de toda, apavorava a todos.

Antônio tinha irmãos menores que não sentiam os mesmos medos, embora fossem todos pobres e filhos de gente pobre que viam, a partir da retina dos pais cansados, a fome como um meio de construir caráter. Passo fome desde que nasci dizia o pai de Antônio. Deus só ama quem sente fome, dizia a madrasta. E assim teciam, a família e a cidade, essa rede absoluta de argumentos que fizeram o que fizeram ao Antônio que se mostra aqui. Pai, mãe que não era, a cidade que noite não tinha, faziam um mal culposo, desses que se faz mas que, por burrice ou ingenuidade, não se quis fazer. Quando esse mesmo pai morreu, ainda muito moço, antônio virou-se do avesso e pôs para correr quem na casa sobrara, a viúva  e os irmãos menores e alguns dos seus piores medos. Que a fome ensinasse a eles viver por conta e passasse a lhes dar os mesmos medos que lhe assombravam nas madrugadas de dia claro, lembrou em conversa franca com alguém que lhe deu ouvidos nos anos que a frente viriam. Sozinho aos treze anos, vivia num casarão no beiral do rio, guardado por uma jaqueira e um rifle que ansiava usar com o pavor que lhe beijava o estômago. Em borborema já era daquele tempo rotina os aventureiros trazendo cobiça, prados e charcos, quando o rio vinha dar desgosto era janeiro. Subia metros acima do que devia e punha as gentes para longe. Os teimosos ficavam. Havia lama demais, casas de pouco e um sentimento de eterno recomeço. Já era dessa data de menino só que o comércio das coisas e pessoas se eriçavam com a chegada dos colonos convidados pelo governo a ocupar espaços que, dizia o governo, era de ninguém e de todos. E tanto mercearia quanto puteiro se acendiam tão logo os ponteiros dos relógios marcassem sete da noite que era dia pois em borborema noite, noite mesmo, nunca era. 

Meados de setembro 

Zélinha dividia-se entre a bodega onde vendia o que tinha e o bordel donde tinha uma irmã mais velha a se fazer de puta nos dias de sempre. Pôs-se, portanto, conhecida de antônio porque vendia ao

28 de setembro de 2013

Jasmim #24 | Somos Todos Homens

De um sonho absurdo acordei com um bigode que não era meu. Imagina, eu, durmo mulher e acordo como se homem fosse. Eu, de bigode. Meu rosto nunca mentiu. Do cenho ao queixo, quando contrito, contrariado e contraído, nunca sorrisos. Quando feliz, lágrimas ausentes. Mas no sonho não se tratava de buço por fazer. Era um bigode de respeito. Logo eu, quem diria de novo. Papéis rasgados. Ri de mim quando lembro que um dia escrevi isso. Tentei ser escritor quando jovem e me dei por vencido um caderno e meio depois. Eu não levava jeito, não entendia o caminho e se acertasse o rumo, com certeza, não seguraria o tranco. Maria isabel, amiga de minha mãe, foi quem disse que o ofício de escrever não era uma questão de saber escrever. Mas saber ter leitores. Todo mundo quer um agrado, dizia entre os tragos e a fumaça que lhe eram companhia e costume. O leitor não menos, continuava. Maria era uma mulher feia, que se escondia da vida, mas que trazia nos olhos um raiar de alguma coisa. E adorava esse enigma em si mesma. Na boca trazia um bico de rugas de quem muito fuma e uma certeza tão grande de que era bem quista que se fazia conhecida dos filhos de minha mãe como se fosse ela a mãe de todos eles. A mim tratava como se eu fosse meu pai. Geraldinho, seu café. Geraldinho, a conta de luz veio um absurdo. Geraldinho, ontem fui ao teatro. Geraldinho, esse seu flamengo não vale nada. Geraldo, meu pai, viajava muito. E mesmo que voltasse trazendo mimos e presentes, era como se nunca estivesse ali. Conheceu minha mãe vinte e tantos anos antes quando eram tão meninos como eu fui na época em que queria ser escritor. O trecho do que seria um conto sobre dormir mulher e acordar homem foi tratado por maria como lixo. E no meu círculo restrito de gentes daqueles tempos, ela entendia das coisas. Geraldinho, esse é o texto mais machista que já me leram. De machistas sei eu, completou. Eu tinha catorze anos e uma vontade de mundo que mal me cabia na boca. Vá bater punheta que você ganha mais, ria maria. Punheteiro! Ria de novo. E ria, ria como matita perera. Eu tinha espinhas na cara, voz de menina e meu texto era um lixo machista, embora de machismo nada entendesse. E maria a me provocar com geraldinho isso, geraldinho aquilo, geraldinho. Meu nome é naiara, caralho! As figuras de linguagem me cochichavam os ouvidos e, embora não fizessem sentido naquele instante de tempo, me ajudaram a ilustrar meus choros num logo depois. Somos isso: a certeza do instante quando o mesmo instante deixa de ser dúvida e se torna passado. Eu queria ser escritor, mas a única coisa que eu sabia era que, para tal, precisaria de leitores. Eu tinha catorze anos quando minha mãe descobriu que o pai tinha uma segunda família, com mulher, filho e sobrinho a dividir sua atenção que para nós era pouca. No susto da notícia que lhe veio como um murro no peito, a mãe jogou-se no chão da cozinha às birras. Parecia uma caixa d'água em excessos. Chamou por minha avó. Por seu deus. Por um vômito nervoso. Gritava que no coração queimava um tipo de fogo e chorou copiosamente por horas. A mocinha que lhe ajeitava as unhas, lhe arrancava os pelos e lhe pintava os cabelos estava em casa almoçando com a gente e atualizava o falatório. Num descuido deu com a língua nos dentes e a deixa no ar para que minha mãe desabasse: verinha, outro dia vi seu geraldo buscando o mais novo na creche. Filho mais novo, pai, creche, tudo caberia no retrato falado pela manicure, não fosse o fato consumado de que o caçula dos filhos de geraldo e vera tinha catorze anos e queria ser escritor. Minha mãe caiu num desespero de chamar por uma avó que nunca conheci e clamar por deus com a cera de aparar o buço dependurada na cara. A gritaria era de abatedouro. E a vizinhança inteira pôde ouvir - é uma casa de loucos, de certo diziam. Maria isabel veio dar com a cara no portão, mas o cadeado não a deixou avançar. Tentou vencer o muro aos pulos, mas a cerca elétrica estava lá. Geraldinho, gritou, Me deixe entrar ou chamo a polícia. Abri o que tinha para abrir. Ela entrou. E meu pai saiu carregando duas malas como se fosse para uma das suas viagens de sempre. Embora naquele instante o para sempre tenha sido um para sempre de fato. Entreolharam-se. Vá e não volte, senão lhe mato, disse a amiga de mãe. Ele foi. Maria encontrou minha mãe estirada no chão da cozinha como se tivesse levado uma surra. A mocinha das unhas tentava um consolo. E tremia de um medo contente - vai entender essa gente que adora rir da desgraça que não é sua. Acodiram-se. Meus ouvidos doíam. Geraldinho, disse maria isabel enquanto com os olhos me buscava e com as mãos apalpava o corpo de minha mãe, não seja como os homens são. Seu pai, geraldinho, seu pai é como esses homens. Eu tinha catorze anos e não entendia as coisas da vida embora a vida me esfregasse seus exageros na cara: chupa essa, geraldinho. Engole tudo, geraldinho. Meu nome é samara, porra. Minha mãe aparava lágrimas e sobrancelhas com frequência. É preciso, ela me dizia. Fico mais feminina. E maria isabel assentia com uma mão em seu ombro e uma barba por fazer. Eu tinha catorze anos e não entendia de buços e bigodes e ria de qualquer coisa um pouco como chorava por outras coisas um tanto. Minhas sobrancelhas eram grossas e teimavam em ser uma só me transformando numa pessoa difícil, dessas de mal com o mundo. Queria sorrisos, mas só sabia chorar. Eu tinha esse idade que já disse e me pintava às pressas e escondidas. Rímel, sombra e batom, cílios, bochechas e boca de pipira. Vestido florido, vestido de cor, vestido de nada. E mil nomes que pudesse combinar comigo. Jeniffer é nome de puta. Kaline é nome de louca. Talyta é nome de estrela. Ana é nome de amiga. Bruna é nome de rica. Cleuma é nome de vó. Eu tinha dezessete anos quando apanhei de maria. Chegou em casa como se minha mãe fosse, mas em silêncio. Queria ter comigo por suspeitar de mim as coisas que só ela e sua cabeça sabiam. Nas pontas dos pés deu de cara comigo Eu sou seu pai, ela disse com aqueles olhos de quem arreganha os dentes. Você é um lixo, geraldinho. Meu nome é cecília, filha de uma puta. Plá, Sua bicha. Plá, viadinho. Plá, outros tapas na cara. Chorei. Chorou. Choramos. E ficamos por isso mesmo que essas coisas de família se resolvem com o tempo, seja esse tempo curto ou não, uma hora um olhar se cruza com o outro e as lembranças de outrora se organizam em candura. Maria era uma mulher feia, embora mostrasse comédias com seu riso de quem muito sofreu e depois de tanto, se mostrasse por inteira risadas. Eu tinha catorze anos menos seis quando acordei de pronto numa manhã de sábado quando deveria dormir até meio dia e acordar aos pulos para lidar com o sol raivoso que me visitava pela janela todos os dias e ter com ele na piscina do prédio e brincar, brincar, brincar como se o amanhã fosse um tipo de ontem que não se viveu. Mas era cedo, uma graviola me revirava o estômago e um texto de carta não me saía da cabeça há tempos: Querido pai, acho que sou mulher, porque gosto de meninos. A dúvida era se me faltava ou sobrava coragem para dizer o que queria. A carta que nunca mandei parecia querer morrer por perto, pois o medo que dividia comigo a cama, as roupas, o quarto era maior e mais forte do que eu. E a saudade feita e refeita desde a última vez que vi meu pai de malas em mãos a se ir para um todo sempre já era um fio quase invisível de tão distante. Nessa tal manhã recém chegada em mal-estar, ouvi por entre paredes a voz de maria isabel dizer repetidas vezes para minha mãe, Eu sou seu pai, eu sou seu pai. E minha mãe, fingindo um choro, respondia, Então me beija, então me beija. Embora o sol não tivesse me chegado, o verão me lambia os beiços. Com o coração aos pulos, corri até a sala e uma bolsa vermelha me convidava a desfazer os nós que lhe trancava de dentro para fora, me instigando uma esperança de tirar dali o meu pai em pessoa, embora a voz que escapasse pela frestra da porta fosse de maria e seus enigmas. A graviola em mim queria nascer gravioleira e ganhar o mundo. Toda árvore quer tocar os céus, dizia meu pai em versos. A iminência das verdades me gelava como friagem inesperada em setembro. Mas segui com dedos firmes. Quando a bolsa se abriu, carteira, dinheiro, moedas, botões, cigarros e uma foto minha de bigode me pularam em susto. O sol já espreitava pelas janelas e o verão me alisava as virilhas. Eu jurava que seguia firme, mas a foto tremia nas minhas mãos como se fosse viva. Eu, de bigode e minha boca sem saliva. Trêmulo, sôfrego e buliçoso limpei o batom com as costas da mão esquerda e com a direita devolvi meu retrato na bolsa devida. Quem diachos éramos eus, quis saber. Chorei todo o cloro da piscina dos dias de antes. Eu tinha a idade que tinha quando maria isabel, desconfiada da minha desconfiança de frestras de portas e bolsas violadas, me segurou pelo braço e disse com tom de quem sabe da vida, Não seja como esses homens. E me empurrou como se fôssemos irmãos. Era uma mulher feia. O bico em centenas de rugas e os olhos de água, como se coubesse ali um mar inteiro a querer me afogar. Devolvi o empurrão com frases de quem tem o mundo como rival. Ninguém me desafia, maria gritou. Eu sou seu pai, completou lançando perdigotos. Não tenho pai, respondi. A gritaria era de abatedouro. E a vizinhança inteira pôde ouvir - é uma casa de loucos, de certo diziam. E minha mãe pôs a porta aberta e quis saber de quem era a culpa daquilo tudo e maria isabel lhe disse, choramingando, Nosso menino gosta de meninos, veja o que encontrei e mostrou um quase nada, pois nada havia a não ser meu rosto pintado, minha voz de menina e uma carta ao pai que nunca mandei. Mas para o instante e suas dúvidas, bastou. Minha mãe me olhou nos olhos, banhou-se em uma raiva nova e disse ponha-se daqui para fora que não pus filho no mundo para ser do mundo com letras garrafais. E clamou por deus, santos e santas e, sentindo-se sacerdote, me excomungou do coração de todos ao redor, ela e meus irmãos, mas também meus avós, tios e tias, primos e primas, os filhos de suas amigas e nosso senhor Jesus Cristo.. Meus olhos borrados denunciavam o pavor de ter a idade que tinha, dez anos mais oito e ter que ser eu mesmo longe daquilo que me fazia eu, afinal, se não somos nossa casa e nossa gente, não sei quem somos. Fora, gritou minha mãe, já sem paciência de ser aquela
mãe desalmada que punha o filho para dali adiante filho não mais. Fora, gritou mais uma vez, parecendo com Maria isabel lançando perdigotos. E maria isabel, com olhar de quem sabia das coisas, me trouxe duas malas das viagens que nunca fiz. Antes de me abrir o portão e trancar-me cadeado do lado de fora, disse não seja como aqueles homens que não são com letras minúsculas para que não ouvisse sua fala e interpretasse aquilo como um conselho. Olhos cheios, pedi amor. Adeus. Pedi ajuda. Até nunca mais. Pedi perdão. Maria me pegou pelo braço, Eu sou seu pai, menino e  nunca mais volte. A gravioleira se pôs a nascer da janela, ganhando o mundo como lhe era direito, segui com os pés firmes, mas os joelhos bambos de um receio de quem escreve cartas e as manda para ninguém. Querido pai, acho que sou você virado do avesso. Você, de bigode. Maria isabel era meu pai e meu pai, um poeta que não teve onde cair morto mesmo vivo, a ausência embrulhada para presente de aniversário. Eu queria ser escritor para tentar fugir de mim que não era eu, era outra. Quando me encontrei já era tarde, dezoito anos mais sete. Foi como acordar de um sonho absurdo. 

19 de setembro de 2013

Nodoso #030 | Sangue Pisado



De tão fantástico, o tiro dado por samuel horta no capanga que tinha lhe furado o pescoço naquela tarde de quinta-feira foi ouvido no raio de quilômetro e meio. Levado por um vento ranzinza do verão de lá, o estampido ecoou pelo sobe e desce do pasto de bois e vacas, pelo corredor de ramais que iam e vinham sem ninguém e pelos ouvidos das araras que saíram em revoada e desespero das castanheiras que subiam céu acima. No baque da bala, o capanga que nome não tinha, chamou por nossa senhora, fez o sinal da cruz com os olhos virados de quem quase morre e tomou o último gole de ar no mesmo instante que deu com a cara no chão pisado. Antes de fechar-se para o todo sempre, disse Filho de uma puta pela metade, ainda cuspiu. 

Samuel enxugou o sangue que lhe escorria a testa, sem saber direito se era sangue seu ou do outro. O golpe desferido pelo capanga ja não cuspia vermelho e se fazia de raspão, sem os talhos que os cortes do tipo mostram.  Sequer doía. O orgulho de macho era quem lhe gritava os ouvidos. Disse filho de uma puta por inteiro, que não lhe faltava ar, sobrava-lhe raiva. Cuspiu metro e meio adiante a macheza que lhe tomava em todo. Ninguém tira sangue meu, disse em português mal dito. Sentou-se no tamborete ali largado e preparou o fumo economizando lambidas na seda. Pitou o fogo, baforou suspiros e com os olhos cheios de chuva reclamou com deus:  foi ele, meu pai. Foi esse doido aí, que nunca lhe teve respeito, que se pôs no meu caminho como o diabo diante de Cristo no deserto. Foi provação, deus meu. Pitou. Soprou. Chorou. O arrependimento é como tijolo de construção, hora ergue e sustenta, hora esmaga cabeças.

Para cima e além da vista, o Acre seguia incólume. Movia-se pesado, carregando a si mesmo em voltas de nunca ir a lugar algum. Uma coluna de ar úmido e bafiento pesava nas costas de samuel. Ao largo do pasto, donde a mata ia dar como beira de um mar de verdes, um silêncio de papagaios e sanhaços, de pipiras e mutuns fingia cortar os ouvidos do samuel. Grilos a soar como socos, piados e gorjeios, sustos de uma morte que não foi. A mão a lhe cuidar do machucado e a reza a se repetir: foi ele, deus. Filho de uma puta pela metade. A frase do capanga lhe mordia os ouvidos como amante indesejado. O capanga que nome não tinha, mesmo morto, lhe bulinava a alma e tentava cumprir com sua encomenda: por fim a vida de samuel horta, nosso companheiro de história.

Samuel horta colhia as sobras do tabaco na língua com os dedos em pinça. E pragalhava: viado, corno, raparigueiro, filho de uma puta sem rima. Cuspia metro e meio adiante e sentia-se vigiado. Crente, tinha em deus o que deus é: um pai que vigia. Foi ele, deus, solfejou como se fosse músico. O medo é como lâmina da língua a ferir orgulhos, com a diferença de que o faz em silêncio e arromba pregas de dentro para fora. Samuel era homem recém feito, vindo de outras terras, foi tentar a terra com o gado que se plantava por aquelas bandas de pasto e fronteiras reluzentes: de um lado, um brasil distante. De outro, vizinhos de uma bolívia que mal dorme. Nunca foi raro achar quem quisesse estar por lá onde estava samuel. Por mais difícil que estar por lá fosse. Aquele canto de mundo é terra de tanta gente que muitos  acham ser terra de ninguém. Samuel surgiu ali na esperança de renovar as suas próprias esperanças de mancebo. Tinha vinte anos, dois de garimpo e seis meses de vagabundagem quando aceitou o emprego de capataz de fazenda. Dali para ser o que era no instante do tirambasso no capanga que não tinha nome foi um curto salto do tempo. Em pouco mais de ano samuel horta era o matador preferido de quem acha normal ter preferência por quem mata gente a troco de trocos. Enxugou ele o suor que já vinha em lágrimas e puxou o corpo do capanga pelos pés. Ralhou com o defunto: Gordo. Bicho gordo. Suado, samuel ignorava o fato de que após a morte o corpo de um homem dobra de peso. O capanga sem nome era mais um desses: quando vivo, devia medir metro e setenta e pesar seus oitenta quilos, era, portanto, um acreano médio, desses que já não se preocupam com peso e idade a não ser quando o peso e idade se tornam dificuldade em horas de tragédias. 

Assim feito, na hora em que viu que a lâmina afoita da faca não tinha magoado o alvo como previa, o capanga assustou-se com o fato e, sufocado pela surpresa, viu de relance samuel erguer a arma em velocidade enquanto aparava o jorro de sangue que de repente insistiu em lhe fugir do corpo de vítima. De tiro dado, apenas um. Mas se estivesse a assistir a própria morte com olhos de outrem, o capanga que nome não tinha veria que o pipoco certeiro lhe pegara no peito e o peito, empurrado para dentro do corpo, quebrava-lhe a coluna, mostrando-lhe a morte em instante. A dor lancinante lhe prestou o favor de impedi-lo de outras dores sentir. Apenas o ar lhe escapava em chiados. E o sangue que corria livre minutos antes, a ponto de invadir-lhes os olhos como de praxe de quem ganha a vida com o ódio, agora não passava de sangue pisado pelo peso de si morto, sem correr para lá e cá nos quilômetros que cabem dentro de um homem feito.

Samuel arrastou o corpo para baixo de um urucunzeiro e constatou em poucos segundos a curiosa verdade para alguém em momento de desespero: por causa daquele sangue todo, o capanga sem nome parecia um índio de cara avermelhada pela pintura de festa. A semelhança veio e foi em instantes. Mas uma pergunta resolveu ficar por entre as orelhas de samuel. Quantas vidas esse cabra não deu fim, perguntou para si. Umas vinte, trinta, chuto umas quarenta e cinco dada a cara feia, apostou samuel. Caboquinho feio da porra, disse olhando o corpo escarnado. Tirou do morto o cordão de prata que jazia no pescoço, a faca amolada do golpe falho e o que tinha nos bolsos e bolsas do outro: cinqüenta reais, uma carteira de identidade, foto de nossa senhora de fátima e de uma velha que lhe tinha por filho. Samuel horta fez cara torcida e disse por entre os beiços molhados de suor e desespero: o deus de um nem sempre é o deus de outro ainda que esse mesmo deus seja um só. Falso, disse ele. E cuspiu. Verdadeiro mesmo só jesus. Esperou vinte minutos, já ciente que depois de um tempo o sangue não saído de todo corpo morto pisava-se dentro do mesmo, sem jorrar como se novo ainda fosse, e com a faca do algoz agora vítima, cortou-lhe as mãos. E de cada uma delas, as pontas dos dedos. Parou por minuto e pensou que aquela seria a maior maldade que tinha feito na vida, ceifado o sopro de outrem, corta-lhe as mãos e os dedos e calar dali em diante para o todo sempre. Buscou na memória zangadiça semelhanças de atos e perdeu-se na primeira virada de página. Não, maldade semelhante em sua vida não havia, tanto que suspirou suores: preciso me endireitar nessa vida, meu deus.

Já passava das quatro e quarenta quando ao longe, juntos das araras e anuns arredios do pasto, uma camioneta rasgava o ramal com certa fúria, levantando poeira e besouros do capim que engolia o caminho. Puta merda, suspirou samuel. Lá vem. Endireitou o corpo doído de tão agachado e tentou em vão limpar o sangue do outro que naquela hora mais parecia seu. Do jeito que veio, o carro estancou a metro e meio de si e trouxe somente as poeiras. Da carroceria saltaram dois homens com suas caras de quem finge poucos amigos e outras bafoiras. Da cabina desceu às botas, sebastião, que vinha a ser o dono das ideias de por fim na vida alheia por aquelas bandas e por dono ser por dono gostava de ser chamado. Assim então, sebastião era dono. E dono vinha de bigode farpado e de cabeça exageradamente arredondada que lhe escondiam a sordidez peculiar do homem que já beirava os sessenta anos e tinha por mania não ter mania nenhuma a não ser o café preto pela manhã e o milho para os galos de raça ao cair da tarde. Dono era dono. Dos hectares de terra onde punha os bois a serem bois a um punhado generoso de outros empreendimentos,  Sebastião vencia na vida pela via do achaque, do medo e da recompensa de quem lhe vendia lealdade e parceria. Vivia do gado e do prestígio que viver do gado trazia. Mas também vivia de viver a vida dos outros, vendendo proteção a uns e outros, cobrando desses mesmos uns e outros o que achava devido cobrar. Sebastião era dono. E dono, para fim de conversa, era dono.

Samuel horta, começou dono por de trás de uma calma nova e da nuvem de poeira que se dissipava com a brisa de setembro. Está vivo? Morto, respondeu. Falo de você, meu rapaz, retrucou dono. Sigo meio vivo, meio morto, às vezes sangro. O patrão riu. Continua um poeta. E o gordo, continuou o dono. Ao que samuel respondeu, Esse segue mais morto do todos nós ao redor. A fala de Samuel parecia mais pomposa do que o costume e quem lê pode achar que se trata da tinta de januário maia a narrar o fato prolixamente como de costume, mas samuel horta era desses e fazia questão de assim ser, independente das chacotas e deboches dos interlocutores que, dada a fama de filha da putista que tinha como matador, nunca lhe traziam essas, chacotas e deboches, na cara dura de quem desafia a morte, que nessas horas bobas as verdades inconvenientes do que pensam os outros sempre surgem por de trás de sorrisos de cordialidade. Samuel horta era, portanto, um homem de fala formal, mas com parcimônia e sabedoria que lhe colocava com extrema naturalidade palavras de dicionário em sua boca.

Cortei as mãos e os dedos como o dono pediu, puxou assunto samuel. E eu pedi isso, foi, dono respondeu perguntando. Pediu, sim senhor. Ouxe, espantou-se o velho em sorriso de deboche, que dei para isso agora, pedir coisa bruta para meus meninos. E engoliu o riso para continuar: sabe porque pedi  isso, Samuel. Não faço ideia, dono. É melhor então, completou sebastião. Sobe na picape que os dois cuidam do gordo morto. Pensei em me lavar primeiro,  anunciou o matador. Banha lá em casa, menino, comandou o outro. Não demoro, o açude é logo ali. Pois vá, disse o dono.

Foi. O baixio onde o açude se fazia de espelho de um lado era bebedouro do gado, doutro matagal de esconder bicho. Havia mais silêncio por ali do que em qualquer outro lugar daquela imensidão de lugares. Exceto pelo piar de uma galinha-d'água que pescava de um canto do lago e um estalo de madeira por lá e além, tudo era silêncio. E aí é de se pensar que há uma fixação por silêncios acima do normal, mas para gentes como samuel horta, o capanga sem nome e outros matadores, o silêncio é como um lote, uma casa, uma esposa e cinco filhos fortes de saúde, é um dom que não se nasce sabendo, se ganha aprendendo a colher no mundo. Porque silencio se colhe sem plantar. Ele nasce a esmo e espera que o venham pegar.

24 de agosto de 2013

Jasmim #022 | Não Havia Luz e Silêncio

O quarto onde passei a maior parte da minha vida enclausurado por conta de uma doença que nunca soube o nome pegou fogo espontaneamente as duas e trinta da manhã de uma quinta-feira de mil novecentos e noventa e oito. Os detalhes guardo bem porque o dia em que fato e fogo se juntaram num só foi o dia em que Diana e eu escorados no muro de uma casa de esquina, nos comemos pela primeira vez. Não havia luz e silêcio suficientes na rua, mas a pouca idade e o turbilhão de desejos em nossas peles fez com que fosse do jeito que foi: ela contra a parede, uma das pernas suspensas por um dos meus braços e suspiros disputando minha atenção com os lábios lambidos por ela mesma a cada investida. Sempre sonhei com o dia em que traria essa cena para o papel de carta com o qual sempre escrevi antes de queimar. Demorou ano para que conseguisse porque, como expliquei, meu quarto onde passei a maior parte da minha vida por causa de uma doença que nunca soube o nome pegou fogo espontaneamente na madrugada de um dia que a essa altura já não me lembra quando. Isso é coisa do demônio, alguém disse. No dia seguinte, Diana veio me ver e trazia-se numa aflição dobrada: o vizinho viu a gente, menino. O vizinho viu a gente, sussurrou ela com o olhar carregado. Não perguntei mais nada. Olhei fundo nos olhos dela e tentei olhar fundo na lembrança que tinha dos meus proprios olhos. Meu pai vai me matar, ela emendou. Não consegui precisar o dia em que ouvi a conversa entre tia e avó sobre como um homem decente deve agir com uma moça decente e embora desconfiasse que ter currado Diana em um muro do bairro, com o vizinho a nos brechar pelas imensa janela escancarada da rua, não faria de nós, ela e eu, pessoas decentes, virei para ela e disse meio quilo de frases de apoio, tentando de certa forma me convencer também de que tudo ia ficar bem e que eu estaria do lado dela custasse o que tivesse que custar. Meu pai vai me matar, ela repetiu antes de desatar os nós de um choro que, não duvido, caminhava com ela. Eu não mentia, mas também nao sabia se dizia a verdade. Na vida a gente faz ser verdade aquilo que um dia foi vontade.  Por golpe de sorte ou persistência há quem consiga. Naquele instante o resto da minha casa pegou fogo. E eu gritei por ajuda.

***

Quando acordei, meu pai me virou o rosto ferido e analisou em minúcias os detalhes da cara que já não conhecia. Você está ficando violento, disse. Não sabia que se metia em brigas. Nessa época eu dormia em um amontoado de almofadas porque minha cama tinha sido doada para as vítimas da última enchente de verão. O rio, uma serpente de água barrenta não admitia vizinhos e esperava doze meses para reclamar o espaço que lhe era devido: da noite para o dia, punha todos para correr imundos de lama. Sentado em uma das cadeiras de escritório que repousavam no meu antigo quarto de almofadas, meu pai quis saber detalhes de mim. Na noite anterior um grupo de não sei quens tinha me acertado uma série de socos e pontapés em tudo quanto é canto de mim, me largando no chão da rua. Eles queriam dinheiro, perguntou. Não levaram nada. Reconheceu algum deles, continuou o interrogatório. Não. Satifeito, mudou de assunto: sonhou com incêndio? Gritou por fogo a noite inteira. E saiu. Três anos depois, na tarde de um sábado que anunciava frio, meu pai morreu dormindo. Antes de calar para sempre, xingava em sonho. Alarmava o vizinho. Adalberto, adalberto, olha o ladrão! Ainda lembro dos olhos dele ao me ver sem ver: eram fugidios, como se olhassem através de mim.  Morto, tive vontade de lhe dar vários beijos, mas tive medo. Sempre penso na quantidade de medo que carrego comigo. Meu irmão gritou de raiva e minha irmã juntou doou todas as roupas para as vítimas da enchente daquele outro verão. Três anos antes, após me olhar nos olhos e bodejar coisas sobre os socos que tomei na cara, meu pai saiu de casa dizendo que teríamos que nos mudar. De novo? É a quarta vez na vida, reclamei. Melhor do que se mudar pela primeira vez na morte, ironizou.  No dia seguinte, meu estômago explodiu. Aflito, não consegui ver quem juntou meus pedaços pelo chão. Quando acordei, minha mãe passava a mão em meus cabelos e parou em minha testa para saber se ainda vinha quente da gripe que me acertou naquele inverno de dois mil e três. Passou, ela disse. Mas nada de sair da cama. Além da febre que me consumiu o sono por duas noites, meus ouvidos doíam em desespero e meus lençóis amanheciam tomados por manchas de um líquido viscoso que fugia dos meus pesadelos. Meu pai, saído às cinco e meia da manhã fingindo ser meu avô, voltava como tio mário e punha na mesa o pão recente chegado com ele, dizendo vem, menino, vem. E eu nunca ia porque naquela altura da vida eu já ardia em medo dos fantasmas que eram meu pai, meu avô e meu tio, os três a vagar como um pelos cantos da casa. Sempre penso na quantidade de medo que carrego comigo. E minha mãe, mesmo distante, chorava, ai, meu deus, ele está delirando.

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O quarto onde passei aquelas tantas horas entre idas e vindas afogou-se em frases feitas de muitos alguéns.  Chicos, caetanos, betânias e éricos, mas também arnaldos, vinícius, antônios e carlos. Minha irmã anotava nas paredes palavra por palavra enquanto chorava suas coisas e fumava seus cigarros de menta. Aos vinte e três anos de idade, sofria ela por ser mulher, filha, amiga e namorada de um punhado de homens que passou a vida inteira a ver mulheres como ela tal qual um punhado de coisa qualquer. Por isso, mas talvez por outras tantas coisas, que, a cada cigarro apagado na pele branca de menina,  uma frase nascia sobre as paredes do quarto que era nosso a cada fim de dia ou semana. As lembranças que tenho dali em diante não explicam nada sobre passado, futuro ou os espirros que dava meu avô pontualmente às onze e trinta da manhã quando o feijão no fogo atiçava nossos estômagos e nos fazia abrir panelas e frigideiras atrás de fome. Para quê isso, júlio? - perguntava minha avó enquanto recolhia os pratos da mesa de domingo. O resto é um baço retrato de mim mesmo, olhos suados diante de cenas que não compreendia. Vem, menino, vem. E eu com medo. Ai, meu deus, ele está delirando. E eu querendo viver. Nunca entendi o mal que me acometia. Sudorese, manchas viscosas de pesadelos e febre. Eu acordava chorando com meu pai na beira da cama a dizer para eu me cuidar. O que me guarda dessas incertezas de memória e previsão é o fato de que cada fio de cabelo deixado no chão branco do apartamento que tive com cristina valeu mais que as centenas de poucos dinheiros que suei para por no bolso. E meu olhar opaco diante da verdade inexorável e confortante de que ninguém é de outrem se assim não o quiser, mal diz o tanto de amor que tenho em mim. Cristina se foi virando esquinas em uma cidade que as descontruiu. Brasília nunca me recebeu de braços abertos, embora aquele formato de avião avisasse ao mundo que o mundo ali era bem-vindo. Era tio mário quem dizia embalado pelas cervejas de domingo, lúcio costa mentiu para todos nós. Pá! Batia na mesa. Mentiroso de marca maior. Depois de cristina, fui ter com o resto de vida em xapuri. Quinze anos pelo mundo mudam o mundo do qual você fez parte um dia. E já não me reconheciam. Quem é aquele, cochichavam. É o filho de nininha? É o irmão entendido de rosenildo? Veio fugido? Já não havia meu pai a perambular pela casa como se vivo fosse, nem minha mãe a chorar minha febre. Minha avó jazia no túmulo de azul ciano sob a sombra de uma roseira cálida, como era de seu gosto. Quem é aquele?  É o filho de nininha? Todas as tardes, minha irmã, já mulher feita, punha as mãos sobre as minhas e dizia chorar pedras de cloro. Para dentro, maninho. Choro para dentro. E eu, que era de desacreditar, via que naquela boca que nunca beijei, saía verdades em forma de tristeza. O jambeiro do quintal ainda imperava com sua sombra, mas já não havia sílvio santos na televisão e meu avô a espirrar.  Nunca tive o costume de usar vírgulas e minha irmã, já sem os cigarros de menta, os cortes nas canelas ou a presença de quem mora junto, passou a empregá-las a torto e a direito em suas cartas de quem vive em silêncio. O quarto que ela deixou para mim já não se deixa ler como antes: as paredes tornaram à alvura da cal e calaram as poesias de outrora. Achei melhor, ela disse. Não havia luz suficiente. Deu-me uma cama de solteiro, um jogo de lençol de gosto que duvido, uma mesa de cabeceira e um pote de vidro com bolotas de algodão sem o uso frequente. Olhou-me nos olhos e nos vimos fugidios, como se olhássemos através de nós mesmos, filhos de quem somos.

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Quando o sono vem, falo como minha mãe, que ante de morrer disse sem lágrimas nos olhos, Não sei quem somos eus. Mas na maior parte do tempo sigo acordado, lutando comigo mesmo, tentado por abraços calorosos, imitando às avessas cristinas, dianas, luísas e amandas, mas também brunas, alines, fernandas e marianas, mulheres que nas horas de arengas se irritavam com o mundo e me puniam como se fosse eu todo o mundo delas. Aos cinquenta e cinco anos sofria eu por ser homem, filho, amigo e ex-marido de um punhado de mulheres que passou a vida inteira a ver homens como eu tal qual um punhado de coisa qualquer. Por isso, mas talvez por outras tantas coisas, que, a cada ruga esticada pelo excesso de sódio em minha comida, um silêncio nascia em mim a cada fim de dia ou semana. Enchendo-me de um orgulho torto e derramando para dentro esse mesmo orgulho e choro, muito choro, como se fosse mais um verão de enchentes - parecia mágoa, mas era uma vontade de me ver afogar. O quarto onde passei a metade da vida inventando histórias pegou fogo, se encharcou de chuva, se deixou empalidecer em busca de luz suficiente para apagar as frases feitas de gente que nunca conheci pessoalmente. Às quatro e meia da tarde, frango e farofa na boca, meu coração para. Tomado por um susto e tremendo, chamo minha irmã, mulher feita há tempos e lágrimas de cloro dos olhos para dentro, que vem me ver com pressa. Passa as mãos na minha testa que já é a cabeça inteira. Tem febre, quer saber. Minha saliva pastosa e minha retina cansada respondem que não, sim, talvez. Que saudade, eu digo. Ela chora. Minha barba falha e minha pele morena são lembranças dos tempos em que cuspia poesia, cerveja e violão. Eu era um rapaz bonito. Minha irmã chora. Quando nasceu, minha irmã não chorava. Há algo errado com essa criança, alguém disse. Ela prefere o silêncio, respondeu o pai. Os anos passam e ela ainda fala com as mãos, com os olhos, com os pés. Deixa a voz para quando a voz se faz necessária. O jambeiro ainda empresta pétalas e estames rosados para o tapete do quintal. A brisa é boa, mas o ar me falta. Minha barba branca e minha pele cinza são as certezas de que o tempo me cuspiu alegrias. Eu seria um avô querido. Minha irmã implora. Mário, mário. Só tenho você nesta vida, diz sem dizer. Tento segurar sua mão falante, mas o tempo tem pressa. Não chora, nininha. Sempre penso nos silêncios dos quais fomos feitos. Sempre foram melhores que nossos medos. Até hoje sonho com ela.