28 de setembro de 2013

Jasmim #24 | Somos Todos Homens

De um sonho absurdo acordei com um bigode que não era meu. Imagina, eu, durmo mulher e acordo como se homem fosse. Eu, de bigode. Meu rosto nunca mentiu. Do cenho ao queixo, quando contrito, contrariado e contraído, nunca sorrisos. Quando feliz, lágrimas ausentes. Mas no sonho não se tratava de buço por fazer. Era um bigode de respeito. Logo eu, quem diria de novo. Papéis rasgados. Ri de mim quando lembro que um dia escrevi isso. Tentei ser escritor quando jovem e me dei por vencido um caderno e meio depois. Eu não levava jeito, não entendia o caminho e se acertasse o rumo, com certeza, não seguraria o tranco. Maria isabel, amiga de minha mãe, foi quem disse que o ofício de escrever não era uma questão de saber escrever. Mas saber ter leitores. Todo mundo quer um agrado, dizia entre os tragos e a fumaça que lhe eram companhia e costume. O leitor não menos, continuava. Maria era uma mulher feia, que se escondia da vida, mas que trazia nos olhos um raiar de alguma coisa. E adorava esse enigma em si mesma. Na boca trazia um bico de rugas de quem muito fuma e uma certeza tão grande de que era bem quista que se fazia conhecida dos filhos de minha mãe como se fosse ela a mãe de todos eles. A mim tratava como se eu fosse meu pai. Geraldinho, seu café. Geraldinho, a conta de luz veio um absurdo. Geraldinho, ontem fui ao teatro. Geraldinho, esse seu flamengo não vale nada. Geraldo, meu pai, viajava muito. E mesmo que voltasse trazendo mimos e presentes, era como se nunca estivesse ali. Conheceu minha mãe vinte e tantos anos antes quando eram tão meninos como eu fui na época em que queria ser escritor. O trecho do que seria um conto sobre dormir mulher e acordar homem foi tratado por maria como lixo. E no meu círculo restrito de gentes daqueles tempos, ela entendia das coisas. Geraldinho, esse é o texto mais machista que já me leram. De machistas sei eu, completou. Eu tinha catorze anos e uma vontade de mundo que mal me cabia na boca. Vá bater punheta que você ganha mais, ria maria. Punheteiro! Ria de novo. E ria, ria como matita perera. Eu tinha espinhas na cara, voz de menina e meu texto era um lixo machista, embora de machismo nada entendesse. E maria a me provocar com geraldinho isso, geraldinho aquilo, geraldinho. Meu nome é naiara, caralho! As figuras de linguagem me cochichavam os ouvidos e, embora não fizessem sentido naquele instante de tempo, me ajudaram a ilustrar meus choros num logo depois. Somos isso: a certeza do instante quando o mesmo instante deixa de ser dúvida e se torna passado. Eu queria ser escritor, mas a única coisa que eu sabia era que, para tal, precisaria de leitores. Eu tinha catorze anos quando minha mãe descobriu que o pai tinha uma segunda família, com mulher, filho e sobrinho a dividir sua atenção que para nós era pouca. No susto da notícia que lhe veio como um murro no peito, a mãe jogou-se no chão da cozinha às birras. Parecia uma caixa d'água em excessos. Chamou por minha avó. Por seu deus. Por um vômito nervoso. Gritava que no coração queimava um tipo de fogo e chorou copiosamente por horas. A mocinha que lhe ajeitava as unhas, lhe arrancava os pelos e lhe pintava os cabelos estava em casa almoçando com a gente e atualizava o falatório. Num descuido deu com a língua nos dentes e a deixa no ar para que minha mãe desabasse: verinha, outro dia vi seu geraldo buscando o mais novo na creche. Filho mais novo, pai, creche, tudo caberia no retrato falado pela manicure, não fosse o fato consumado de que o caçula dos filhos de geraldo e vera tinha catorze anos e queria ser escritor. Minha mãe caiu num desespero de chamar por uma avó que nunca conheci e clamar por deus com a cera de aparar o buço dependurada na cara. A gritaria era de abatedouro. E a vizinhança inteira pôde ouvir - é uma casa de loucos, de certo diziam. Maria isabel veio dar com a cara no portão, mas o cadeado não a deixou avançar. Tentou vencer o muro aos pulos, mas a cerca elétrica estava lá. Geraldinho, gritou, Me deixe entrar ou chamo a polícia. Abri o que tinha para abrir. Ela entrou. E meu pai saiu carregando duas malas como se fosse para uma das suas viagens de sempre. Embora naquele instante o para sempre tenha sido um para sempre de fato. Entreolharam-se. Vá e não volte, senão lhe mato, disse a amiga de mãe. Ele foi. Maria encontrou minha mãe estirada no chão da cozinha como se tivesse levado uma surra. A mocinha das unhas tentava um consolo. E tremia de um medo contente - vai entender essa gente que adora rir da desgraça que não é sua. Acodiram-se. Meus ouvidos doíam. Geraldinho, disse maria isabel enquanto com os olhos me buscava e com as mãos apalpava o corpo de minha mãe, não seja como os homens são. Seu pai, geraldinho, seu pai é como esses homens. Eu tinha catorze anos e não entendia as coisas da vida embora a vida me esfregasse seus exageros na cara: chupa essa, geraldinho. Engole tudo, geraldinho. Meu nome é samara, porra. Minha mãe aparava lágrimas e sobrancelhas com frequência. É preciso, ela me dizia. Fico mais feminina. E maria isabel assentia com uma mão em seu ombro e uma barba por fazer. Eu tinha catorze anos e não entendia de buços e bigodes e ria de qualquer coisa um pouco como chorava por outras coisas um tanto. Minhas sobrancelhas eram grossas e teimavam em ser uma só me transformando numa pessoa difícil, dessas de mal com o mundo. Queria sorrisos, mas só sabia chorar. Eu tinha esse idade que já disse e me pintava às pressas e escondidas. Rímel, sombra e batom, cílios, bochechas e boca de pipira. Vestido florido, vestido de cor, vestido de nada. E mil nomes que pudesse combinar comigo. Jeniffer é nome de puta. Kaline é nome de louca. Talyta é nome de estrela. Ana é nome de amiga. Bruna é nome de rica. Cleuma é nome de vó. Eu tinha dezessete anos quando apanhei de maria. Chegou em casa como se minha mãe fosse, mas em silêncio. Queria ter comigo por suspeitar de mim as coisas que só ela e sua cabeça sabiam. Nas pontas dos pés deu de cara comigo Eu sou seu pai, ela disse com aqueles olhos de quem arreganha os dentes. Você é um lixo, geraldinho. Meu nome é cecília, filha de uma puta. Plá, Sua bicha. Plá, viadinho. Plá, outros tapas na cara. Chorei. Chorou. Choramos. E ficamos por isso mesmo que essas coisas de família se resolvem com o tempo, seja esse tempo curto ou não, uma hora um olhar se cruza com o outro e as lembranças de outrora se organizam em candura. Maria era uma mulher feia, embora mostrasse comédias com seu riso de quem muito sofreu e depois de tanto, se mostrasse por inteira risadas. Eu tinha catorze anos menos seis quando acordei de pronto numa manhã de sábado quando deveria dormir até meio dia e acordar aos pulos para lidar com o sol raivoso que me visitava pela janela todos os dias e ter com ele na piscina do prédio e brincar, brincar, brincar como se o amanhã fosse um tipo de ontem que não se viveu. Mas era cedo, uma graviola me revirava o estômago e um texto de carta não me saía da cabeça há tempos: Querido pai, acho que sou mulher, porque gosto de meninos. A dúvida era se me faltava ou sobrava coragem para dizer o que queria. A carta que nunca mandei parecia querer morrer por perto, pois o medo que dividia comigo a cama, as roupas, o quarto era maior e mais forte do que eu. E a saudade feita e refeita desde a última vez que vi meu pai de malas em mãos a se ir para um todo sempre já era um fio quase invisível de tão distante. Nessa tal manhã recém chegada em mal-estar, ouvi por entre paredes a voz de maria isabel dizer repetidas vezes para minha mãe, Eu sou seu pai, eu sou seu pai. E minha mãe, fingindo um choro, respondia, Então me beija, então me beija. Embora o sol não tivesse me chegado, o verão me lambia os beiços. Com o coração aos pulos, corri até a sala e uma bolsa vermelha me convidava a desfazer os nós que lhe trancava de dentro para fora, me instigando uma esperança de tirar dali o meu pai em pessoa, embora a voz que escapasse pela frestra da porta fosse de maria e seus enigmas. A graviola em mim queria nascer gravioleira e ganhar o mundo. Toda árvore quer tocar os céus, dizia meu pai em versos. A iminência das verdades me gelava como friagem inesperada em setembro. Mas segui com dedos firmes. Quando a bolsa se abriu, carteira, dinheiro, moedas, botões, cigarros e uma foto minha de bigode me pularam em susto. O sol já espreitava pelas janelas e o verão me alisava as virilhas. Eu jurava que seguia firme, mas a foto tremia nas minhas mãos como se fosse viva. Eu, de bigode e minha boca sem saliva. Trêmulo, sôfrego e buliçoso limpei o batom com as costas da mão esquerda e com a direita devolvi meu retrato na bolsa devida. Quem diachos éramos eus, quis saber. Chorei todo o cloro da piscina dos dias de antes. Eu tinha a idade que tinha quando maria isabel, desconfiada da minha desconfiança de frestras de portas e bolsas violadas, me segurou pelo braço e disse com tom de quem sabe da vida, Não seja como esses homens. E me empurrou como se fôssemos irmãos. Era uma mulher feia. O bico em centenas de rugas e os olhos de água, como se coubesse ali um mar inteiro a querer me afogar. Devolvi o empurrão com frases de quem tem o mundo como rival. Ninguém me desafia, maria gritou. Eu sou seu pai, completou lançando perdigotos. Não tenho pai, respondi. A gritaria era de abatedouro. E a vizinhança inteira pôde ouvir - é uma casa de loucos, de certo diziam. E minha mãe pôs a porta aberta e quis saber de quem era a culpa daquilo tudo e maria isabel lhe disse, choramingando, Nosso menino gosta de meninos, veja o que encontrei e mostrou um quase nada, pois nada havia a não ser meu rosto pintado, minha voz de menina e uma carta ao pai que nunca mandei. Mas para o instante e suas dúvidas, bastou. Minha mãe me olhou nos olhos, banhou-se em uma raiva nova e disse ponha-se daqui para fora que não pus filho no mundo para ser do mundo com letras garrafais. E clamou por deus, santos e santas e, sentindo-se sacerdote, me excomungou do coração de todos ao redor, ela e meus irmãos, mas também meus avós, tios e tias, primos e primas, os filhos de suas amigas e nosso senhor Jesus Cristo.. Meus olhos borrados denunciavam o pavor de ter a idade que tinha, dez anos mais oito e ter que ser eu mesmo longe daquilo que me fazia eu, afinal, se não somos nossa casa e nossa gente, não sei quem somos. Fora, gritou minha mãe, já sem paciência de ser aquela
mãe desalmada que punha o filho para dali adiante filho não mais. Fora, gritou mais uma vez, parecendo com Maria isabel lançando perdigotos. E maria isabel, com olhar de quem sabia das coisas, me trouxe duas malas das viagens que nunca fiz. Antes de me abrir o portão e trancar-me cadeado do lado de fora, disse não seja como aqueles homens que não são com letras minúsculas para que não ouvisse sua fala e interpretasse aquilo como um conselho. Olhos cheios, pedi amor. Adeus. Pedi ajuda. Até nunca mais. Pedi perdão. Maria me pegou pelo braço, Eu sou seu pai, menino e  nunca mais volte. A gravioleira se pôs a nascer da janela, ganhando o mundo como lhe era direito, segui com os pés firmes, mas os joelhos bambos de um receio de quem escreve cartas e as manda para ninguém. Querido pai, acho que sou você virado do avesso. Você, de bigode. Maria isabel era meu pai e meu pai, um poeta que não teve onde cair morto mesmo vivo, a ausência embrulhada para presente de aniversário. Eu queria ser escritor para tentar fugir de mim que não era eu, era outra. Quando me encontrei já era tarde, dezoito anos mais sete. Foi como acordar de um sonho absurdo. 

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