24 de agosto de 2013

Jasmim #022 | Não Havia Luz e Silêncio

O quarto onde passei a maior parte da minha vida enclausurado por conta de uma doença que nunca soube o nome pegou fogo espontaneamente as duas e trinta da manhã de uma quinta-feira de mil novecentos e noventa e oito. Os detalhes guardo bem porque o dia em que fato e fogo se juntaram num só foi o dia em que Diana e eu escorados no muro de uma casa de esquina, nos comemos pela primeira vez. Não havia luz e silêcio suficientes na rua, mas a pouca idade e o turbilhão de desejos em nossas peles fez com que fosse do jeito que foi: ela contra a parede, uma das pernas suspensas por um dos meus braços e suspiros disputando minha atenção com os lábios lambidos por ela mesma a cada investida. Sempre sonhei com o dia em que traria essa cena para o papel de carta com o qual sempre escrevi antes de queimar. Demorou ano para que conseguisse porque, como expliquei, meu quarto onde passei a maior parte da minha vida por causa de uma doença que nunca soube o nome pegou fogo espontaneamente na madrugada de um dia que a essa altura já não me lembra quando. Isso é coisa do demônio, alguém disse. No dia seguinte, Diana veio me ver e trazia-se numa aflição dobrada: o vizinho viu a gente, menino. O vizinho viu a gente, sussurrou ela com o olhar carregado. Não perguntei mais nada. Olhei fundo nos olhos dela e tentei olhar fundo na lembrança que tinha dos meus proprios olhos. Meu pai vai me matar, ela emendou. Não consegui precisar o dia em que ouvi a conversa entre tia e avó sobre como um homem decente deve agir com uma moça decente e embora desconfiasse que ter currado Diana em um muro do bairro, com o vizinho a nos brechar pelas imensa janela escancarada da rua, não faria de nós, ela e eu, pessoas decentes, virei para ela e disse meio quilo de frases de apoio, tentando de certa forma me convencer também de que tudo ia ficar bem e que eu estaria do lado dela custasse o que tivesse que custar. Meu pai vai me matar, ela repetiu antes de desatar os nós de um choro que, não duvido, caminhava com ela. Eu não mentia, mas também nao sabia se dizia a verdade. Na vida a gente faz ser verdade aquilo que um dia foi vontade.  Por golpe de sorte ou persistência há quem consiga. Naquele instante o resto da minha casa pegou fogo. E eu gritei por ajuda.

***

Quando acordei, meu pai me virou o rosto ferido e analisou em minúcias os detalhes da cara que já não conhecia. Você está ficando violento, disse. Não sabia que se metia em brigas. Nessa época eu dormia em um amontoado de almofadas porque minha cama tinha sido doada para as vítimas da última enchente de verão. O rio, uma serpente de água barrenta não admitia vizinhos e esperava doze meses para reclamar o espaço que lhe era devido: da noite para o dia, punha todos para correr imundos de lama. Sentado em uma das cadeiras de escritório que repousavam no meu antigo quarto de almofadas, meu pai quis saber detalhes de mim. Na noite anterior um grupo de não sei quens tinha me acertado uma série de socos e pontapés em tudo quanto é canto de mim, me largando no chão da rua. Eles queriam dinheiro, perguntou. Não levaram nada. Reconheceu algum deles, continuou o interrogatório. Não. Satifeito, mudou de assunto: sonhou com incêndio? Gritou por fogo a noite inteira. E saiu. Três anos depois, na tarde de um sábado que anunciava frio, meu pai morreu dormindo. Antes de calar para sempre, xingava em sonho. Alarmava o vizinho. Adalberto, adalberto, olha o ladrão! Ainda lembro dos olhos dele ao me ver sem ver: eram fugidios, como se olhassem através de mim.  Morto, tive vontade de lhe dar vários beijos, mas tive medo. Sempre penso na quantidade de medo que carrego comigo. Meu irmão gritou de raiva e minha irmã juntou doou todas as roupas para as vítimas da enchente daquele outro verão. Três anos antes, após me olhar nos olhos e bodejar coisas sobre os socos que tomei na cara, meu pai saiu de casa dizendo que teríamos que nos mudar. De novo? É a quarta vez na vida, reclamei. Melhor do que se mudar pela primeira vez na morte, ironizou.  No dia seguinte, meu estômago explodiu. Aflito, não consegui ver quem juntou meus pedaços pelo chão. Quando acordei, minha mãe passava a mão em meus cabelos e parou em minha testa para saber se ainda vinha quente da gripe que me acertou naquele inverno de dois mil e três. Passou, ela disse. Mas nada de sair da cama. Além da febre que me consumiu o sono por duas noites, meus ouvidos doíam em desespero e meus lençóis amanheciam tomados por manchas de um líquido viscoso que fugia dos meus pesadelos. Meu pai, saído às cinco e meia da manhã fingindo ser meu avô, voltava como tio mário e punha na mesa o pão recente chegado com ele, dizendo vem, menino, vem. E eu nunca ia porque naquela altura da vida eu já ardia em medo dos fantasmas que eram meu pai, meu avô e meu tio, os três a vagar como um pelos cantos da casa. Sempre penso na quantidade de medo que carrego comigo. E minha mãe, mesmo distante, chorava, ai, meu deus, ele está delirando.

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O quarto onde passei aquelas tantas horas entre idas e vindas afogou-se em frases feitas de muitos alguéns.  Chicos, caetanos, betânias e éricos, mas também arnaldos, vinícius, antônios e carlos. Minha irmã anotava nas paredes palavra por palavra enquanto chorava suas coisas e fumava seus cigarros de menta. Aos vinte e três anos de idade, sofria ela por ser mulher, filha, amiga e namorada de um punhado de homens que passou a vida inteira a ver mulheres como ela tal qual um punhado de coisa qualquer. Por isso, mas talvez por outras tantas coisas, que, a cada cigarro apagado na pele branca de menina,  uma frase nascia sobre as paredes do quarto que era nosso a cada fim de dia ou semana. As lembranças que tenho dali em diante não explicam nada sobre passado, futuro ou os espirros que dava meu avô pontualmente às onze e trinta da manhã quando o feijão no fogo atiçava nossos estômagos e nos fazia abrir panelas e frigideiras atrás de fome. Para quê isso, júlio? - perguntava minha avó enquanto recolhia os pratos da mesa de domingo. O resto é um baço retrato de mim mesmo, olhos suados diante de cenas que não compreendia. Vem, menino, vem. E eu com medo. Ai, meu deus, ele está delirando. E eu querendo viver. Nunca entendi o mal que me acometia. Sudorese, manchas viscosas de pesadelos e febre. Eu acordava chorando com meu pai na beira da cama a dizer para eu me cuidar. O que me guarda dessas incertezas de memória e previsão é o fato de que cada fio de cabelo deixado no chão branco do apartamento que tive com cristina valeu mais que as centenas de poucos dinheiros que suei para por no bolso. E meu olhar opaco diante da verdade inexorável e confortante de que ninguém é de outrem se assim não o quiser, mal diz o tanto de amor que tenho em mim. Cristina se foi virando esquinas em uma cidade que as descontruiu. Brasília nunca me recebeu de braços abertos, embora aquele formato de avião avisasse ao mundo que o mundo ali era bem-vindo. Era tio mário quem dizia embalado pelas cervejas de domingo, lúcio costa mentiu para todos nós. Pá! Batia na mesa. Mentiroso de marca maior. Depois de cristina, fui ter com o resto de vida em xapuri. Quinze anos pelo mundo mudam o mundo do qual você fez parte um dia. E já não me reconheciam. Quem é aquele, cochichavam. É o filho de nininha? É o irmão entendido de rosenildo? Veio fugido? Já não havia meu pai a perambular pela casa como se vivo fosse, nem minha mãe a chorar minha febre. Minha avó jazia no túmulo de azul ciano sob a sombra de uma roseira cálida, como era de seu gosto. Quem é aquele?  É o filho de nininha? Todas as tardes, minha irmã, já mulher feita, punha as mãos sobre as minhas e dizia chorar pedras de cloro. Para dentro, maninho. Choro para dentro. E eu, que era de desacreditar, via que naquela boca que nunca beijei, saía verdades em forma de tristeza. O jambeiro do quintal ainda imperava com sua sombra, mas já não havia sílvio santos na televisão e meu avô a espirrar.  Nunca tive o costume de usar vírgulas e minha irmã, já sem os cigarros de menta, os cortes nas canelas ou a presença de quem mora junto, passou a empregá-las a torto e a direito em suas cartas de quem vive em silêncio. O quarto que ela deixou para mim já não se deixa ler como antes: as paredes tornaram à alvura da cal e calaram as poesias de outrora. Achei melhor, ela disse. Não havia luz suficiente. Deu-me uma cama de solteiro, um jogo de lençol de gosto que duvido, uma mesa de cabeceira e um pote de vidro com bolotas de algodão sem o uso frequente. Olhou-me nos olhos e nos vimos fugidios, como se olhássemos através de nós mesmos, filhos de quem somos.

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Quando o sono vem, falo como minha mãe, que ante de morrer disse sem lágrimas nos olhos, Não sei quem somos eus. Mas na maior parte do tempo sigo acordado, lutando comigo mesmo, tentado por abraços calorosos, imitando às avessas cristinas, dianas, luísas e amandas, mas também brunas, alines, fernandas e marianas, mulheres que nas horas de arengas se irritavam com o mundo e me puniam como se fosse eu todo o mundo delas. Aos cinquenta e cinco anos sofria eu por ser homem, filho, amigo e ex-marido de um punhado de mulheres que passou a vida inteira a ver homens como eu tal qual um punhado de coisa qualquer. Por isso, mas talvez por outras tantas coisas, que, a cada ruga esticada pelo excesso de sódio em minha comida, um silêncio nascia em mim a cada fim de dia ou semana. Enchendo-me de um orgulho torto e derramando para dentro esse mesmo orgulho e choro, muito choro, como se fosse mais um verão de enchentes - parecia mágoa, mas era uma vontade de me ver afogar. O quarto onde passei a metade da vida inventando histórias pegou fogo, se encharcou de chuva, se deixou empalidecer em busca de luz suficiente para apagar as frases feitas de gente que nunca conheci pessoalmente. Às quatro e meia da tarde, frango e farofa na boca, meu coração para. Tomado por um susto e tremendo, chamo minha irmã, mulher feita há tempos e lágrimas de cloro dos olhos para dentro, que vem me ver com pressa. Passa as mãos na minha testa que já é a cabeça inteira. Tem febre, quer saber. Minha saliva pastosa e minha retina cansada respondem que não, sim, talvez. Que saudade, eu digo. Ela chora. Minha barba falha e minha pele morena são lembranças dos tempos em que cuspia poesia, cerveja e violão. Eu era um rapaz bonito. Minha irmã chora. Quando nasceu, minha irmã não chorava. Há algo errado com essa criança, alguém disse. Ela prefere o silêncio, respondeu o pai. Os anos passam e ela ainda fala com as mãos, com os olhos, com os pés. Deixa a voz para quando a voz se faz necessária. O jambeiro ainda empresta pétalas e estames rosados para o tapete do quintal. A brisa é boa, mas o ar me falta. Minha barba branca e minha pele cinza são as certezas de que o tempo me cuspiu alegrias. Eu seria um avô querido. Minha irmã implora. Mário, mário. Só tenho você nesta vida, diz sem dizer. Tento segurar sua mão falante, mas o tempo tem pressa. Não chora, nininha. Sempre penso nos silêncios dos quais fomos feitos. Sempre foram melhores que nossos medos. Até hoje sonho com ela.

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