27 de outubro de 2013

Nodoso #75 | O Nodoso Gosto das Coisas

A noite caída em borborema nunca foi noite direito. A margem esquerda do rio marolho e sua cidade nascida na base do tapa não se deram por vencidas na arte de negar a noite e suas coisas. Estrelas, grilos, sapos, fantasmas e assombrações a surgir pelos cantos da escuridão típica do fim de cada dia eram detalhes das tardes colhidas pelas paredes de madeira que faziam as casas daquela gente esquecida no meio daquela imensidão verde. Em borborema até a noite esqueceu-se de noite ser.  Assim, por motivo de nunca se soube, o sol mal se ia. estava sempre ali a espreita com seu brilho amarelo ouro fraquinho, com suas coisas de dia, seus barulhos de quem sabe que o calor acolhe e espanta. 

Sobre nunca ser noite, o prefeito daquele canto nada tinha com isso, que político só é dono do que é bom. E viver com o sol a pino como lua, boa coisa nunca pareceu ser. O que diriam os dali se pudessem dizer algo novo sobre o que já caducava com as páginas viradas do tempo. Como não havia noite, não havia a brisa amena das horas além, não havia a penumbra a beijar as pálpebras, não havia história de fantasma e curupira e rasga-mortalha a assustar criança. Em borborema esses assuntos eram de outros tons. Tons claros da manhã meio dia ou do lusco-fusco do fingir noite.  Não haviam cinzas ou violáceas de aurora e constatar tais faltas dava nos nervos como dá nos nervos o agora que não segue. Siga-se. 

Sobre a falta de findar os dias, tal qual o prefeito e sua magreza alva, os moradores se eximiam de responsabilidades, que, ouvia-se, a culpa do que acontece no mundo é assunto do divino ou de seu oposto, concordando nisso o pároco, o pastor e o pai-de-santo, mesmo que por desavenças de ideologias, hora ou outra, culpassem-se uns aos outros, o demo isso, satanás aquilo, excomungados tal pelo eterno fato. O fato é que nunca se soube da coisa e o passar do tempo não deixou conjecturas a respeito do tema, pois todo fato sobre o outro faz com que fato deixe de ser. Faz parte, alguém contou. Sobrou então apenas um muxoxo de quem aceita por costume o que o acaso mal escrito lhe impõe. Era assim sem ponto e vírgula. 

Desse mesmo muxoxo, Antônio era feito. O que não o fazia igual, embora por ali e pela pobreza todos fossem iguais de cara e espírito: a cara chupada para dentro da boca, os olhos afundados de um espanto e os dentes a fazer sobrar palavras na fala brava daquelas bandas. Assim como todos em carência, Antônio era pautado pela duvida e pela raiva que vinha nela. Da noite nunca ser noite, de nada sabia. A cada investida de pergunta, respondia antonio e sua boca de sorriso torto a contrariedade na tal certeza de quem ali vivia, algo que para quem ia e vinha, forasteiros de falas mansas e chiadas, paulistas e catarinas em busca das fortunas que davam em árvore, sentido não fazia. A noite nunca é, seu moço. E fim.

O sol e sua luz de ouro a fazer perder paciências, a forma como se mal dormia por aquelas praças, as firulas mal contadas, o mulherio desajeitado com o calor sobejando as partes, os homens de roupas abertas e suores a dizer pule na água, tudo parecia normal como a lua pálida típica dos dias. Órfão e feio, porque a condição primeira não basta para a vida, Antônio tinha vergonha da própria história com a qual mal se dava, que ao contrario da fábula de borborema, vivia num conto de treva sem da treva beber sequer dos sustos. Antônio era tal qual borborema, sua terra, tinha por vício deixar a vida seguir como o curso do rio que seguia pela margem dali: novo e talvez por isso, denso. Impávido e impaciente. Água e lama e segredos. 

Antônio, como borborema, sua terra que não tinha noite, perdeu-se: morreu a mãe antes de se entender mãe, criou-se com outra mulher que mãe passou a ser, mas que por motivos óbvios daquele tempo, não queria filho alheio para chamar de seu. e mal via no pai, um mascate que inventava xaropes e mungangos de curar moléstias, o pai que todo menino pequeno e menino grande procura ter. A história que tinha vergonha lhe fugia ao controle de quem escreve e pautava-se por uma infindável e interligada trama de mesmas coisas, maus tratos e malinagens nascidas com a madrasta trevosa. Tinha vício de esconder do moço comida para que a fome, quem dizia era ela, lhe ensinasse a viver por conta. Aprende, filho de deus, resmungava a mulher no tanque de lavar roupa, Vai trabalhar, vagabundo, xingava a mesma já na beira do fogo do feijão. A fome, meu filho, dizia o pai de antonio, ajuda a vencer na vida. Uma vez que vivemos nela a contragosto, pegamos gosto por sair de perto dela. E toda vez que o pai lhe dizia isso, nadava-lhe pelas vísceras uma especie de lamento que, fermentado como pão, fazia-se raiva e crescia e crescia. Nasci para viver e morrer como um qualquer, pensava o garoto, com palavras de quem garoto era, mas com sentimento de quem se via velho.

O certo é que Antônio, gente nascida da morte, sem saber, trazia no peito a mácula de achar-se matador. Matei minha mãe, padre. Por causa de mim morreu ela, pastor. Ó meu pai preto, sofro de culpa. Reclamava o já moço Antônio aos três sacerdotes de borborema que discordavam mesmo concordando. Reze, dizia um. Ore, ordenava o outro. Ofereça, aconselhava o ultimo. E Antônio rezava, orava e matava galinhas toda vez que sentia o peito pesar, a garganta em nó e a vida a perder sentido. Criado por mãe postiça, aquela vida de treze anos não fazia sentido. Mas em borborema, terra onde noite nunca teve, pouca coisa tinha. Borborema tinha árvores que criavam raízes, tinha gente que via e ouvia verdades e mentiras, tinha sol e chuva, os bichos a correr no mato, tinha o mato para dizer sou mato e daqui ninguém me tira e tinha uma noite que não era noite e que mesmo sem o pretume de toda, apavorava a todos.

Antônio tinha irmãos menores que não sentiam os mesmos medos, embora fossem todos pobres e filhos de gente pobre que viam, a partir da retina dos pais cansados, a fome como um meio de construir caráter. Passo fome desde que nasci dizia o pai de Antônio. Deus só ama quem sente fome, dizia a madrasta. E assim teciam, a família e a cidade, essa rede absoluta de argumentos que fizeram o que fizeram ao Antônio que se mostra aqui. Pai, mãe que não era, a cidade que noite não tinha, faziam um mal culposo, desses que se faz mas que, por burrice ou ingenuidade, não se quis fazer. Quando esse mesmo pai morreu, ainda muito moço, antônio virou-se do avesso e pôs para correr quem na casa sobrara, a viúva  e os irmãos menores e alguns dos seus piores medos. Que a fome ensinasse a eles viver por conta e passasse a lhes dar os mesmos medos que lhe assombravam nas madrugadas de dia claro, lembrou em conversa franca com alguém que lhe deu ouvidos nos anos que a frente viriam. Sozinho aos treze anos, vivia num casarão no beiral do rio, guardado por uma jaqueira e um rifle que ansiava usar com o pavor que lhe beijava o estômago. Em borborema já era daquele tempo rotina os aventureiros trazendo cobiça, prados e charcos, quando o rio vinha dar desgosto era janeiro. Subia metros acima do que devia e punha as gentes para longe. Os teimosos ficavam. Havia lama demais, casas de pouco e um sentimento de eterno recomeço. Já era dessa data de menino só que o comércio das coisas e pessoas se eriçavam com a chegada dos colonos convidados pelo governo a ocupar espaços que, dizia o governo, era de ninguém e de todos. E tanto mercearia quanto puteiro se acendiam tão logo os ponteiros dos relógios marcassem sete da noite que era dia pois em borborema noite, noite mesmo, nunca era. 

Meados de setembro 

Zélinha dividia-se entre a bodega onde vendia o que tinha e o bordel donde tinha uma irmã mais velha a se fazer de puta nos dias de sempre. Pôs-se, portanto, conhecida de antônio porque vendia ao

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