19 de setembro de 2013

Nodoso #030 | Sangue Pisado



De tão fantástico, o tiro dado por samuel horta no capanga que tinha lhe furado o pescoço naquela tarde de quinta-feira foi ouvido no raio de quilômetro e meio. Levado por um vento ranzinza do verão de lá, o estampido ecoou pelo sobe e desce do pasto de bois e vacas, pelo corredor de ramais que iam e vinham sem ninguém e pelos ouvidos das araras que saíram em revoada e desespero das castanheiras que subiam céu acima. No baque da bala, o capanga que nome não tinha, chamou por nossa senhora, fez o sinal da cruz com os olhos virados de quem quase morre e tomou o último gole de ar no mesmo instante que deu com a cara no chão pisado. Antes de fechar-se para o todo sempre, disse Filho de uma puta pela metade, ainda cuspiu. 

Samuel enxugou o sangue que lhe escorria a testa, sem saber direito se era sangue seu ou do outro. O golpe desferido pelo capanga ja não cuspia vermelho e se fazia de raspão, sem os talhos que os cortes do tipo mostram.  Sequer doía. O orgulho de macho era quem lhe gritava os ouvidos. Disse filho de uma puta por inteiro, que não lhe faltava ar, sobrava-lhe raiva. Cuspiu metro e meio adiante a macheza que lhe tomava em todo. Ninguém tira sangue meu, disse em português mal dito. Sentou-se no tamborete ali largado e preparou o fumo economizando lambidas na seda. Pitou o fogo, baforou suspiros e com os olhos cheios de chuva reclamou com deus:  foi ele, meu pai. Foi esse doido aí, que nunca lhe teve respeito, que se pôs no meu caminho como o diabo diante de Cristo no deserto. Foi provação, deus meu. Pitou. Soprou. Chorou. O arrependimento é como tijolo de construção, hora ergue e sustenta, hora esmaga cabeças.

Para cima e além da vista, o Acre seguia incólume. Movia-se pesado, carregando a si mesmo em voltas de nunca ir a lugar algum. Uma coluna de ar úmido e bafiento pesava nas costas de samuel. Ao largo do pasto, donde a mata ia dar como beira de um mar de verdes, um silêncio de papagaios e sanhaços, de pipiras e mutuns fingia cortar os ouvidos do samuel. Grilos a soar como socos, piados e gorjeios, sustos de uma morte que não foi. A mão a lhe cuidar do machucado e a reza a se repetir: foi ele, deus. Filho de uma puta pela metade. A frase do capanga lhe mordia os ouvidos como amante indesejado. O capanga que nome não tinha, mesmo morto, lhe bulinava a alma e tentava cumprir com sua encomenda: por fim a vida de samuel horta, nosso companheiro de história.

Samuel horta colhia as sobras do tabaco na língua com os dedos em pinça. E pragalhava: viado, corno, raparigueiro, filho de uma puta sem rima. Cuspia metro e meio adiante e sentia-se vigiado. Crente, tinha em deus o que deus é: um pai que vigia. Foi ele, deus, solfejou como se fosse músico. O medo é como lâmina da língua a ferir orgulhos, com a diferença de que o faz em silêncio e arromba pregas de dentro para fora. Samuel era homem recém feito, vindo de outras terras, foi tentar a terra com o gado que se plantava por aquelas bandas de pasto e fronteiras reluzentes: de um lado, um brasil distante. De outro, vizinhos de uma bolívia que mal dorme. Nunca foi raro achar quem quisesse estar por lá onde estava samuel. Por mais difícil que estar por lá fosse. Aquele canto de mundo é terra de tanta gente que muitos  acham ser terra de ninguém. Samuel surgiu ali na esperança de renovar as suas próprias esperanças de mancebo. Tinha vinte anos, dois de garimpo e seis meses de vagabundagem quando aceitou o emprego de capataz de fazenda. Dali para ser o que era no instante do tirambasso no capanga que não tinha nome foi um curto salto do tempo. Em pouco mais de ano samuel horta era o matador preferido de quem acha normal ter preferência por quem mata gente a troco de trocos. Enxugou ele o suor que já vinha em lágrimas e puxou o corpo do capanga pelos pés. Ralhou com o defunto: Gordo. Bicho gordo. Suado, samuel ignorava o fato de que após a morte o corpo de um homem dobra de peso. O capanga sem nome era mais um desses: quando vivo, devia medir metro e setenta e pesar seus oitenta quilos, era, portanto, um acreano médio, desses que já não se preocupam com peso e idade a não ser quando o peso e idade se tornam dificuldade em horas de tragédias. 

Assim feito, na hora em que viu que a lâmina afoita da faca não tinha magoado o alvo como previa, o capanga assustou-se com o fato e, sufocado pela surpresa, viu de relance samuel erguer a arma em velocidade enquanto aparava o jorro de sangue que de repente insistiu em lhe fugir do corpo de vítima. De tiro dado, apenas um. Mas se estivesse a assistir a própria morte com olhos de outrem, o capanga que nome não tinha veria que o pipoco certeiro lhe pegara no peito e o peito, empurrado para dentro do corpo, quebrava-lhe a coluna, mostrando-lhe a morte em instante. A dor lancinante lhe prestou o favor de impedi-lo de outras dores sentir. Apenas o ar lhe escapava em chiados. E o sangue que corria livre minutos antes, a ponto de invadir-lhes os olhos como de praxe de quem ganha a vida com o ódio, agora não passava de sangue pisado pelo peso de si morto, sem correr para lá e cá nos quilômetros que cabem dentro de um homem feito.

Samuel arrastou o corpo para baixo de um urucunzeiro e constatou em poucos segundos a curiosa verdade para alguém em momento de desespero: por causa daquele sangue todo, o capanga sem nome parecia um índio de cara avermelhada pela pintura de festa. A semelhança veio e foi em instantes. Mas uma pergunta resolveu ficar por entre as orelhas de samuel. Quantas vidas esse cabra não deu fim, perguntou para si. Umas vinte, trinta, chuto umas quarenta e cinco dada a cara feia, apostou samuel. Caboquinho feio da porra, disse olhando o corpo escarnado. Tirou do morto o cordão de prata que jazia no pescoço, a faca amolada do golpe falho e o que tinha nos bolsos e bolsas do outro: cinqüenta reais, uma carteira de identidade, foto de nossa senhora de fátima e de uma velha que lhe tinha por filho. Samuel horta fez cara torcida e disse por entre os beiços molhados de suor e desespero: o deus de um nem sempre é o deus de outro ainda que esse mesmo deus seja um só. Falso, disse ele. E cuspiu. Verdadeiro mesmo só jesus. Esperou vinte minutos, já ciente que depois de um tempo o sangue não saído de todo corpo morto pisava-se dentro do mesmo, sem jorrar como se novo ainda fosse, e com a faca do algoz agora vítima, cortou-lhe as mãos. E de cada uma delas, as pontas dos dedos. Parou por minuto e pensou que aquela seria a maior maldade que tinha feito na vida, ceifado o sopro de outrem, corta-lhe as mãos e os dedos e calar dali em diante para o todo sempre. Buscou na memória zangadiça semelhanças de atos e perdeu-se na primeira virada de página. Não, maldade semelhante em sua vida não havia, tanto que suspirou suores: preciso me endireitar nessa vida, meu deus.

Já passava das quatro e quarenta quando ao longe, juntos das araras e anuns arredios do pasto, uma camioneta rasgava o ramal com certa fúria, levantando poeira e besouros do capim que engolia o caminho. Puta merda, suspirou samuel. Lá vem. Endireitou o corpo doído de tão agachado e tentou em vão limpar o sangue do outro que naquela hora mais parecia seu. Do jeito que veio, o carro estancou a metro e meio de si e trouxe somente as poeiras. Da carroceria saltaram dois homens com suas caras de quem finge poucos amigos e outras bafoiras. Da cabina desceu às botas, sebastião, que vinha a ser o dono das ideias de por fim na vida alheia por aquelas bandas e por dono ser por dono gostava de ser chamado. Assim então, sebastião era dono. E dono vinha de bigode farpado e de cabeça exageradamente arredondada que lhe escondiam a sordidez peculiar do homem que já beirava os sessenta anos e tinha por mania não ter mania nenhuma a não ser o café preto pela manhã e o milho para os galos de raça ao cair da tarde. Dono era dono. Dos hectares de terra onde punha os bois a serem bois a um punhado generoso de outros empreendimentos,  Sebastião vencia na vida pela via do achaque, do medo e da recompensa de quem lhe vendia lealdade e parceria. Vivia do gado e do prestígio que viver do gado trazia. Mas também vivia de viver a vida dos outros, vendendo proteção a uns e outros, cobrando desses mesmos uns e outros o que achava devido cobrar. Sebastião era dono. E dono, para fim de conversa, era dono.

Samuel horta, começou dono por de trás de uma calma nova e da nuvem de poeira que se dissipava com a brisa de setembro. Está vivo? Morto, respondeu. Falo de você, meu rapaz, retrucou dono. Sigo meio vivo, meio morto, às vezes sangro. O patrão riu. Continua um poeta. E o gordo, continuou o dono. Ao que samuel respondeu, Esse segue mais morto do todos nós ao redor. A fala de Samuel parecia mais pomposa do que o costume e quem lê pode achar que se trata da tinta de januário maia a narrar o fato prolixamente como de costume, mas samuel horta era desses e fazia questão de assim ser, independente das chacotas e deboches dos interlocutores que, dada a fama de filha da putista que tinha como matador, nunca lhe traziam essas, chacotas e deboches, na cara dura de quem desafia a morte, que nessas horas bobas as verdades inconvenientes do que pensam os outros sempre surgem por de trás de sorrisos de cordialidade. Samuel horta era, portanto, um homem de fala formal, mas com parcimônia e sabedoria que lhe colocava com extrema naturalidade palavras de dicionário em sua boca.

Cortei as mãos e os dedos como o dono pediu, puxou assunto samuel. E eu pedi isso, foi, dono respondeu perguntando. Pediu, sim senhor. Ouxe, espantou-se o velho em sorriso de deboche, que dei para isso agora, pedir coisa bruta para meus meninos. E engoliu o riso para continuar: sabe porque pedi  isso, Samuel. Não faço ideia, dono. É melhor então, completou sebastião. Sobe na picape que os dois cuidam do gordo morto. Pensei em me lavar primeiro,  anunciou o matador. Banha lá em casa, menino, comandou o outro. Não demoro, o açude é logo ali. Pois vá, disse o dono.

Foi. O baixio onde o açude se fazia de espelho de um lado era bebedouro do gado, doutro matagal de esconder bicho. Havia mais silêncio por ali do que em qualquer outro lugar daquela imensidão de lugares. Exceto pelo piar de uma galinha-d'água que pescava de um canto do lago e um estalo de madeira por lá e além, tudo era silêncio. E aí é de se pensar que há uma fixação por silêncios acima do normal, mas para gentes como samuel horta, o capanga sem nome e outros matadores, o silêncio é como um lote, uma casa, uma esposa e cinco filhos fortes de saúde, é um dom que não se nasce sabendo, se ganha aprendendo a colher no mundo. Porque silencio se colhe sem plantar. Ele nasce a esmo e espera que o venham pegar.

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